quarta-feira, 9 de julho de 2014
Ouro no barraco: o livro, capitulo 1, parte 1
Hoje tem ouro no barraco. Pela pinta da cuiada raspada no
pé da tarisca, peão arrisca acima de duzentos gramas bem amassados. Finalmente,
depois de três semanas de furação em terra cega, acertei numa boca de serviço
de respeito. Na balsa, os mergulhadores passaram a noite fazendo bubuia e
chamando ouro com tiros de vinte.
No barraco “dona Baiana”, minha cozinheira, está contente
com a novidade. Quem sabe irá caprichar no almoço de logo mais. Sei que, longe
de torcer pela balsa, “dona Baiana” está sempre pensando no reco do fundo da
canoa.
A tradição de liberar o reco da cozinheira em cada despescada não é um
bom negócio. Quando o ouro barrela, “dona Baiana” cozinha mal e enfezada.
Quando o ouro melhora, a comida sai um pouco melhor, mas sem convencer ninguém.
Para mim, ouro muito ou
ouro pouco não faz diferença. Minha alegria em garimpar é sempre a mesma. Às
vezes tento explicar esse jeito de encarar o garimpo ao meu pessoal, mas não
sou bem compreendido. Peão pensa que sou desaconçoado pelo fato de estar sempre
animado, mesmo nas fases de ourinho pouco, quando o blefo se avizinha da gente.
Eu sei que o metal não tem hora nem dia para entrar no meu vidro. Sei também
que sou apenas um peão de trecho, procurando um ouro que não guardei debaixo do
rio. Nessa situação, cada fagulho que entra no meu vidro é lucro, é saldo de
uma vida aventureira desdobrada nesse imenso Brasil.
Às vezes, penso: quando cheguei a Itaituba, há muitos
anos, arrastando a cachorra e urrando de blefo, tudo que eu me permitia sonhar
era uma maloca para amarrar a minha rede e o dinheirinho necessário para pagar
um prato de comida em banca de rua. Hoje, depois de viver a minha ladainha de
brabo, fiz uma condição. A balsa cinco-polegadas, a voadeira de alumínio com
motor vinte e cinco, além do barraco controlado, patrimônio superior a cinco
quilos de metal, me provam que não tenho direito de reclamar de nada.
Realmente, estou bem saldado. Minha aventura no garimpo está dando certo.
Quando “Barbudo”, o meu
gerente, baixou há uma semana empurrado por uma febre braba, assumi a
assistência da balsa. De lá para cá, pilotando a voadeira sem parar, quase não
encontro hora para dormir. Uma balsa exige mil providências para funcionar a
contento. Nessa madrugada, por exemplo, tive que ir a vários barracos em busca
de uma correia do compressor de ar. Por conta dessa pane, perdemos três horas
no esquema da mandada. Ainda bem que estamos em cima de um ouro bom. Neste
caso, o tempo parado não influirá no resultado da pesada.
A balsa está apoitada no pé de um pedral, próximo à Ilha
da Fantasia, no rio São Manoel, afluente do Tapajós, nos limites dos Estados do
Pará e Mato Grosso, a quatrocentos e cinqüenta quilômetros da cidade de
Itaituba e a menos de cem metros do meu barraco. O barulho do motor arregaçado,
os gritos de peões e as esparsas descargas do compressor de ar me dizem, a
distância, o tempo todo, o que se passa em cima do meu serviço. À noite, no
fundo da rede, meus sonhos costumam se misturar com esses barulhos que magoam a
quietude da mata. Nesses sonhos — jamais com ouro — meu subconsciente sem
governo me obriga a visualizar cenas do meu passado desengonçado. Nessa
madrugada, nas duas horas de sono que me proporcionei, ao fim da procura da
correia do compressor, fui tomado por um sonho mais agradável. Nesse sonho, eu
subia a ladeira da Conceição da Praia, em Salvador. Do lado de um sobrado
amarelo, numa janela larga, vi uma morena bonita e madura que sorria para mim.
Ela fazia acenos lentos e cadenciados, tal qual uma boneca de pilha. O curto
espaço de tempo no qual o pequeno filme se projetava na tela do meu
subconsciente não me permitiu saber se a dama era viva ou morta. Ela era muito
parecida com Eleonor, uma criatura com a qual vivi durante alguns meses em
Itaituba.
“Dona Baiana” liberou as
garrafas térmicas e a marmita de cuscuz às seis horas, enquanto eu embarcava a
tralha da despesca. Naveguei o pequeno trajeto até a balsa bem devagar. Nesse
horário a superfície do rio fica lisa como um espelho e emana uma bruma suave,
uma espécie de fumaça que nos leva a pensar que a água está a ponto de ferver.
Esse tênue vapor, por sinal muito assíduo nos meus sonhos, agrada aos meus
olhos e faz bem à minha alma.
1 comentários:
Geólogos vale o aprendizado de ler...
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